domingo, 28 de março de 2010

MENSAGEM À POESIA - VINICIUS DE MORAES


Mensagem à Poesia




Vinicius de Moraes





Não posso

Não é possível

Digam-lhe que é totalmente impossível

Agora não pode ser

É impossível

Não posso.

Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu encontro.



Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar

Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo.

Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo

E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo

A saudade de seus homens; contem-lhe que há um vácuo

Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema; contem-lhe

Que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares, e é preciso

reconquistar a vida

Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os caminhos

Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso.

Ponderem-lhe, com cuidado – não a magoem... – que se não vou

Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num cárcere

Há um lavrador que foi agredido, há um poça de sangue numa praça.

Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus

Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem

Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens

E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto

Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento

Aos homens perplexos; digam-lhe que me foi dada

A terrível participação, e que possivelmente

Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias

Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.

Se ela não compreender, oh procurem convencê-la

Desse invencível dever que é o meu; mas digam-lhe

Que, no fundo, tudo o que estou dando é dela, e que me

Dói ter de despojá-la assim, neste poema; que por outro lado

Não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento

Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado

Há fome e mentira; e um pranto de criança sozinha numa estrada

Junto a um cadáver de mãe: digam-lhe que há

Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem

Arrependido; digam-lhe que há uma casa vazia

Com um relógio batendo horas; digam-lhe que há um grande

Aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações

Há fantasmas que me visitam de noite

E que me cumpre receber, contem a ela da minha certeza

No amanhã

Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite

Vivo em tensão ante a expectativa do milagre; por isso

Peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora

Com a sua voz de sombra; que não me faça sentir covarde

De ter de abandoná-la neste instante, em sua imensurável

Solidão, peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale

Por um momento, que não me chame

Porque não posso ir

Não posso ir

Não posso.



Mas não a traí. Em meu coração

Vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa

Envergonhá-la. A minha ausência.

É também um sortilégio

Do seu amor por mim. Vivo do desejo de revê-la

Num mundo em paz. Minha paixão de homem

Resta comigo; minha solidão resta comigo; minha

Loucura resta comigo. Talvez eu deva

Morrer sem vê-Ia mais, sem sentir mais

O gosto de suas lágrimas, olhá-la correr

Livre e nua nas praias e nos céus

E nas ruas da minha insônia. Digam-lhe que é esse

O meu martírio; que às vezes

Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas

Forças da tragédia abastecem-se sobre mim, e me impelem para a treva

Mas que eu devo resistir, que é preciso...

Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência

Com toda a violência das antigas horas de contemplação extática

Num amor cheio de renúncia. Oh, peçam a ela

Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo

A quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante

A quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa

Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho

A quem foi dado se perder de amor pelo direito

De todos terem um pequena casa, um jardim de frente

E uma menininha de vermelho; e se perdendo

Ser-lhe doce perder-se...

Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível

Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame

Que me espere, porque sou seu, apenas seu; mas que agora

É mais forte do que eu, não posso ir

Não é possível

Me é totalmente impossível

Não pode ser não

É impossível

Não posso.





Vinicius de Moraes, o verdadeiro poeta brasileiro, tenta resistir à poesia. O poema acima foi extraído do livro "Antologia Poética", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 160

Vem sentar-te comigo, Lídia, à Beira do Rio - Fernando Pessoa





Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio



Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos.)



Depois pensemos, crianças adultas, que a vida

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.



Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassosegos grandes.



Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,

Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,

Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

E sempre iria ter ao mar.



Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,

Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,

Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

Ouvindo correr o rio e vendo-o.



Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as

No colo, e que o seu perfume suavize o momento —

Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,

Pagãos inocentes da decadência.



Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois

Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

Nem fomos mais do que crianças.



E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,

Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.

Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,

Pagã triste e com flores no regaço.



Ricardo Reis, in "Odes"

Heterónimo de Fernando Pessoa

Poema de sete faces - Drummond


Poema de sete faces






Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.







As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.







O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.







O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos , raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode.







Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.







Mundo mundo vasto mundo

se eu me chamasse Raimundo,

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.







Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo

A Lágrima - Guerra Junqueiro


A Lágrima




Manhã de Junho ardente. Uma encosta escavada,

Sêca, deserta e nua, à beira d'uma estrada.



Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha,

Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.



Sôbre uma folha hostil duma figueira brava,

Mendiga que se nutre a pedregulho e lava,



A aurora desprendeu, compassiva e divina,

Uma lágrima etérea, enorme e cristalina.



Lágrima tão ideal, tão límpida, que ao vê-la,

De perto era um diamante e de longe uma estrêla.



Passa um rei com o seu cortejo de espavento,

Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.



- "No meu diadema, disse o rei, quedando a olhar,

Há safiras sem conta e brilhantes sem par,



"Há rubins orientais, sangrentos e doirados,

Como beijos d'amor, a arder, cristalizados.



"Há pérolas que são gotas de mágua imensa,

Que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa.



"Pois, brilhantes, rubins e pérolas de Ofir,

Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir



"Nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema,

Vendo o Globo a teus pés do alto do teu diadema!"



E a lágrima deleste, ingénua e luminosa,

Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.



- - -



Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,

Passa no seu ginete um cavaleiro andante.



E o cavaleiro diz à lágrima irisada:

"Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!



"Far-te hei relampejar, de vitória em vitória,

Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória!



"E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro,

Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.



"E assim alumiarás com teu vivo esplendor

Mil combates de heróis e mil sonhos d'amor!"



E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,

Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.



- - -



Montado numa mula escura, de caminho,

Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.



Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro:

Grandes arcas de cedro, abarrotadas d'oiro.



E o velhinho andrajoso e magro como um junco,

O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,



Vendo a estrêla, exclamou: "Oh Deus, que maravilha!

Como ela resplandece, e tremeluz, e brilha!



"Com meu oiro em montão podiam-se comprar

Os impérios dos reis e os navios do mar,



"E por esse diamante esplêndido trocara

Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!"



E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,

Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.



- - -



Debaixo da figueira, então, um cardo agreste,

Já ressequido, disse à lágrima celeste:



"A terra onde o lilaz e a balsamina medra

Para mim teve sempre um coração de pedra.



"Se a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso,

O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.



"Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos,

Ouvi trinar, gorgear a música dos ninhos.



"Nunca junto de mim ranchos de namoradas

Debandaram, cantando, em noites estreladas...



"Voa a ave no azul e passa longe o amor,

Porque ai! Nunca dei sombra e nunca tive flor!...



"Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d'água,

Cai na desolação desta infinita mágoa!"



E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,

Tremeu, tremeu, tremeu... e caíu silenciosa!...



- - -



E algum tempo depois o triste cardo exangue,

Reverdecendo, dava uma flor côr de sangue,



Dum roxo macerado, e dorido, e desfeito,

Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito...



E ao cálix virginal da pobre flor vermelha

Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...

.





Guerra Junqueiro

25 de Março de 1888

domingo, 21 de março de 2010

Considerações sobre o sono - Antonio Maria

Considerações sobre o Sono




Antônio Maria





A pessoa que dorme está inteiramente só. *** Quando o homem dorme, o seu rosto se desmarca de todas as tramas e de todos os desgostos. *** Nada enternece mais uma mulher que o rosto do amante, dormindo. *** Ela se debruça sobre a face do amado e descobre que eram simples palavras todas as valentias que ele lhe vinha dizendo ou dando a entender. *** É quando a gente se parece menos com os mortos... é quando se está dormindo. *** Quanto mais pobre mais comovente o ser humano que dorme. *** No sono, a imobilidade das pessoas boas e confiantes é sempre desarrumada. *** Gente má dorme em posição de sentido. ***Cada travesseiro tem um lugar e uma importância definidos na vigência do sono. *** Não há nenhum abandono casual, nas pernas, nos braços ou na cabeça de quem dorme, porque o corpo realiza, desde que haja espaço, sua única posição realmente confortável. *** Experimente descobrir na mulher que dorme a seu lado, um ser infinitamente decente, muito além de sua capacidade de fazer-lhe uma razoável justiça. *** Quanta luz nos corpos despidos das mulheres claras! *** Seria uma demasia de requinte ou de louvação, fazê-las dormir sobre lençóis negros? *** A mais leve carícia de sua mão sobre o corpo da amada que dorme poderá quebrar a solidão do sono e a tranqüilidade da carne já não seria completa (contente-se em enternecer-se, sem tocá-la). *** Se for preciso despertá-la, que seja com ruídos aparentemente casuais. *** Ah, que intensos ciúmes, no passado e no futuro, sobre a nudez da amada que dorme! Só você a viu, só você a verá assim tão bela! *** Nas mulheres que dormem vestidas há sempre, por menor que seja, um sentimento de desconfiança. *** A amada tem sob os cílios a sombra suave das nuvens. *** Seu sossego é o de quem vai ser flor, após o último vício e a última esperança. *** Um homem e uma mulher jamais deveriam dormir ao mesmo tempo, embora invariavelmente juntos, para que não perdessem, um no outro, o primeiro carinho de que desperta. *** Mas, já que é isso impossível, que ao menos chova, a noite inteira, sobre os telhados dos amantes.



Rio, 17/1/1956





Texto extraído do livro "O Jornal de Antônio Maria", Editora Saga - Rio de Janeiro, 1968, pág. 42.

terça-feira, 2 de março de 2010

AH! OS RELÓGIOS. MARIO QUINTANA

AH! OS RELÓGIOS




Amigos, não consultem os relógios

quando um dia eu me for de vossas vidas

em seus fúteis problemas tão perdidas

que até parecem mais uns necrológios...



Porque o tempo é uma invenção da morte:

não o conhece a vida - a verdadeira -

em que basta um momento de poesia

para nos dar a eternidade inteira.



Inteira, sim, porque essa vida eterna

somente por si mesma é dividida:

não cabe, a cada qual, uma porção.



E os Anjos entreolham-se espantados

quando alguém - ao voltar a si da vida -

acaso lhes indaga que horas são...



Mario Quintana - A Cor do Invisível

FERNANDO PESSOA - GUARDADOR DE REBANHOS - VII - HETERONOMIO DE ALBERTO CAEIRO


Alberto Caeiro




VIII - Num Meio-Dia de Fim de Primavera





Num meio-dia de fim de primavera

Tive um sonho como uma fotografia.

Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

A correr e a rolar-se pela erva

E a arrancar flores para as deitar fora

E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.

No céu era tudo falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.

No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma coroa toda à roda de espinhos

E os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãe

Como as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas

Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dele;

E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundo

Porque não era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.



Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.

E queriam que ele, que só nascera da mãe,

E nunca tivera pai para amar com respeito,

Pregasse a bondade e a justiça!



Um dia que Deus estava a dormir

E o Espírito Santo andava a voar,

Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.

Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.

Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu

E serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o sol

E desceu pelo primeiro raio que apanhou.



Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas poças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.

Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.

E, porque sabe que elas não gostam

E que toda a gente acha graça,

Corre atrás das raparigas pelas estradas

Que vão em ranchos pela estradas

com as bilhas às cabeças

E levanta-lhes as saias.



A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as cousas.

Aponta-me todas as cousas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.



Diz-me muito mal de Deus.

Diz que ele é um velho estúpido e doente,

Sempre a escarrar no chão

E a dizer indecências.

A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.

E o Espírito Santo coça-se com o bico

E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada

Das coisas que criou —

"Se é que ele as criou, do que duvido" —

"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,

Mas os seres não cantam nada.

Se cantassem seriam cantores.

Os seres existem e mais nada,

E por isso se chamam seres."

E depois, cansados de dizer mal de Deus,

O Menino Jesus adormece nos meus braços

e eu levo-o ao colo para casa.

.............................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.

Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.

Ele é o humano que é natural,

Ele é o divino que sorri e que brinca.

E por isso é que eu sei com toda a certeza

Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.



E a criança tão humana que é divina

É esta minha quotidiana vida de poeta,

E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,

E que o meu mínimo olhar

Me enche de sensação,

E o mais pequeno som, seja do que for,

Parece falar comigo.



A Criança Nova que habita onde vivo

Dá-me uma mão a mim

E a outra a tudo que existe

E assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindo

E gozando o nosso segredo comum

Que é o de saber por toda a parte

Que não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena.



A Criança Eterna acompanha-me sempre.

A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.

O meu ouvido atento alegremente a todos os sons

São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.



Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda.



Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas

No degrau da porta de casa,

Graves como convém a um deus e a um poeta,

E como se cada pedra

Fosse todo um universo

E fosse por isso um grande perigo para ela

Deixá-la cair no chão.



Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens

E ele sorri, porque tudo é incrível.

Ri dos reis e dos que não são reis,

E tem pena de ouvir falar das guerras,

E dos comércios, e dos navios

Que ficam fumo no ar dos altos-mares.

Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer

E que anda com a luz do sol

A variar os montes e os vales,

E a fazer doer nos olhos os muros caiados.



Depois ele adormece e eu deito-o.

Levo-o ao colo para dentro de casa

E deito-o, despindo-o lentamente

E como seguindo um ritual muito limpo

E todo materno até ele estar nu.



Ele dorme dentro da minha alma

E às vezes acorda de noite

E brinca com os meus sonhos.

Vira uns de pernas para o ar,

Põe uns em cima dos outros

E bate as palmas sozinho

Sorrindo para o meu sono.

......................................................................

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é.

.....................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus.

Por que razão que se perceba

Não há de ser ela mais verdadeira

Que tudo quanto os filósofos pensam

E tudo quanto as religiões ensinam?

momento num café - manuel bandeira

Momento num Café

Quando o enterro passou


Os homens que se achavam no café

Tiraram o chapéu maquinalmente

Saudavam o morto distraídos

Estavam todos voltados para a vida

Absortos na vida.



Um no entanto se descobriu num gesto longo e demorado

Olhando o esquife longamente

Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade

Que a vida é traição

Esaudava a matéria que passava

Liberta para sempre da alma extinta.

retrato - cecilia meireles

Retrato


Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.



Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.



Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

- Em que espelho ficou perdida

a minha face?

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

CÚMPLICE - JUCA CHAVES

Originalmente é a letra de uma música do grande humorista e intelectual Juca Chaves. A poesia é muito linda.


CÚMPLICE

Eu quero uma mulher


que seja diferente

de todas que eu já tive,

de todas tão iguais

que seja minha amiga,

amante, confidente

a cúmplice de tudo

que eu fizer a mais.

No corpo tenha o Sol

no coração a Lua

a pele cor de sonho

as formas de maçãs

a fina transparência

uma elegância nua

o mágico fascínio

o cheiro das manhãs.

Eu quero uma mulher

de coloridos modos

que morda os lábios sempre

que for me abraçar

no seu falar provoque

o silenciar de todos

e seu silêncio obrigue

a me fazer sonhar

Que saiba receber

que saiba ser bem-vinda

que possa dar jeitinho

a tudo que fizer

que ao sorrir provoque

uma covinha linda

de dia, uma menina

a noite, uma mulher.

Receita de mulher - Vinícius de Moraes


Vinícius de Moraes



Receita de mulher



As muito feias que me perdoem

Mas beleza é fundamental. É preciso

Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso

Qualquer coisa de dança,

qualquer coisa de haute couture

Em tudo isso (ou então

Que a mulher se socialize

elegantemente em azul,

como na República Popular Chinesa).

Não há meio-termo possível. É preciso

Que tudo isso seja belo. É preciso

que súbito tenha-se a

impressão de ver uma

garça apenas pousada e que um rosto

Adquira de vez em quando essa cor só

encontrável no terceiro minuto da aurora.

É preciso que tudo isso seja sem ser, mas

que se reflita e desabroche

No olhar dos homens. É preciso,

é absolutamente preciso

Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que

umas pálpebras cerradas

Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços

Alguma coisa além da carne: que se os toque

Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos

Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro

Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e

Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem

Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então

Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca

Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.

É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos

Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,

e as pontas pélvicas

No enlaçar de uma cintura semovente.

Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:

uma mulher sem saboneteiras

É como um rio sem pontes. Indispensável.

Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida

A mulher se alteie em cálice, e que seus seios

Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca

E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.

Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral

Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!

Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas

E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem

No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.

É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio

Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).

Preferíveis sem dúvida os pescoços longos

De forma que a cabeça dê por vezes a impressão

De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre

Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos

Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face

Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior

A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras

Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes

E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e

Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão

Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta

Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.

Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos

Ao abri-los ela não estará mais presente

Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá

E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber

O fel da dúvida. Oh, sobretudo

Que ela não perca nunca, não importa em que mundo

Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade

De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma

Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre

O impossível perfume; e destile sempre

O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto

Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina

Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição

Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

DAR NÃO É FAZER AMOR

Texto maravilhoso, contribuição de uma querida colega de trabalho a qual me reservo o direito de não declinar o nome. Disse-me ela que não curte muito poesia  mas contribuiu com este texto maravilhoso.


DAR NÃO É FAZER AMOR


(Luís Fernando Veríssimo)





Dar é dar.

Fazer amor é lindo, é sublime, é encantador, é esplêndido.

Mas dar é bom pra cacete.

Dar é aquela coisa que alguém te puxa os cabelos da nuca...

Te chama de nomes que eu não escreveria...

Não te vira com delicadeza...

Não sente vergonha de ritmos animais. Dar é bom.

Melhor do que dar, só dar por dar.

Dar sem querer casar....

Sem querer apresentar pra mãe...

Sem querer dar o primeiro abraço no Ano Novo.

Dar porque o cara te esquenta a coluna vertebral...

Te amolece o gingado...

Te molha o instinto.

Dar porque a vida é estressante e dar relaxa.

Dar porque se você não der para ele hoje, vai dar amanhã, ou depois de amanhã.

Tem pessoas que você vai acabar dando, não tem jeito.

Dar sem esperar ouvir promessas, sem esperar ouvir carinhos, sem

esperar ouvir futuro.

Dar é bom, na hora.

Durante um mês.

Para os mais desavisados, talvez anos.



Mas dar é dar demais e ficar vazio.

Dar é não ganhar.

É não ganhar um eu te amo baixinho perdido no meio do escuro.

É não ganhar uma mão no ombro quando o caos da cidade parece querer te abduzir.

É não ter alguém pra querer casar, para apresentar pra mãe, pra dar

o primeiro abraço de Ano Novo e pra falar:

"Que que cê acha amor?".

É não ter companhia garantida para viajar.

É não ter para quem ligar quando recebe uma boa notícia.

Dar é não querer dormir encaixadinho...

É não ter alguém para ouvir seus dengos...

Mas dar é inevitável, dê mesmo, dê sempre, dê muito.



Mas dê mais ainda, muito mais do que qualquer coisa, uma chance ao amor.

Esse sim é o maior tesão.

Esse sim relaxa, cura o mau humor, ameniza todas as crises e faz você flutuar



Experimente ser amado...









Alfredo F. Schmitt

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

RESÍDUO - DRUMMOND

De tudo ficou um pouco


Do meu medo. Do teu asco.

Dos gritos gagos. Da rosa

ficou um pouco





Ficou um pouco de luz

captada no chapéu.

Nos olhos do rufião

de ternura ficou um pouco

(muito pouco).





Pouco ficou deste pó

de que teu branco sapato

se cobriu. Ficaram poucas

roupas, poucos véus rotos

pouco, pouco, muito pouco.





Mas de tudo fica um pouco.

Da ponte bombardeada,

de duas folhas de grama,

do maço

- vazio - de cigarros, ficou um pouco.





Pois de tudo fica um pouco.

Fica um pouco de teu queixo

no queixo de tua filha.

De teu áspero silêncio

um pouco ficou, um pouco

nos muros zangados,

nas folhas, mudas, que sobem.





Ficou um pouco de tudo

no pires de porcelana,

dragão partido, flor branca,

ficou um pouco

de ruga na vossa testa,

retrato.





Se de tudo fica um pouco,

mas por que não ficaria

um pouco de mim? no trem

que leva ao norte, no barco,

nos anúncios de jornal,

um pouco de mim em Londres,

um pouco de mim algures?

na consoante?

no poço?





Um pouco fica oscilando

na embocadura dos rios

e os peixes não o evitam,

um pouco: não está nos livros.





De tudo fica um pouco.

Não muito: de uma torneira

pinga esta gota absurda,

meio sal e meio álcool,

salta esta perna de rã,

este vidro de relógio

partido em mil esperanças,

este pescoço de cisne,

este segredo infantil...

De tudo ficou um pouco:

de mim; de ti; de Abelardo.

Cabelo na minha manga,

de tudo ficou um pouco;

vento nas orelhas minhas,

simplório arroto, gemido

de víscera inconformada,

e minúsculos artefatos:

campânula, alvéolo, cápsula

de revólver... de aspirina.

De tudo ficou um pouco.





E de tudo fica um pouco.

Oh abre os vidros de loção

e abafa

o insuportável mau cheiro da memória.





Mas de tudo, terrível, fica um pouco,

e sob as ondas ritmadas

e sob as nuvens e os ventos

e sob as pontes e sob os túneis

e sob as labaredas e sob o sarcasmo

e sob a gosma e sob o vômito

e sob o soluço, o cárcere, o esquecido

e sob os espetáculos e sob a morte escarlate

e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes

e sob tu mesmo e sob teus pés já duros

e sob os gonzos da família e da classe,

fica sempre um pouco de tudo.

Às vezes um botão. Às vezes um rato.

ELEGIA DESESPERADA - O DESESPERO DA PIEDADE - VINICIUS DE MORAES

Elegia Desesperada


(O Desespero da Piedade)



Vinicius de Moraes





Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde

E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...

Mas tende piedade também dos que andam de automóvel

Quantos enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.





Tende piedade das pequenas famílias suburbanas

E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos

Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam

E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina





Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta

Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina

Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte

E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.





Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de casas de chá

Que são virtuoses da própria tristeza e solidão

Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio

E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.





Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram

E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução

Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram

E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.





Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos

Quem em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão

E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão

Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...





Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros

Que se efeminam por profissão mas são humildes nas suas carícias

Mas tende maior piedade ainda dos que cortam o cabelo:

Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!





Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria

Quem lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos

Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo

Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.





Tende piedade dos homens úteis como os dentistas

Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer

Mas tente mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia

Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.





Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos

Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão

Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes

Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.





E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tenha piedade das mulheres

Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres

Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres

Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!





Tende piedade da moça feia que serve na vida

De casa, comida e roupa lavada da moça bonita

Mas tende mais piedade ainda da moça bonita

Que o homem molesta — que o homem não presta, não presta, meu Deus!





Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais

Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação

E sonham exaltadas nos quartos humildes

Os olhos perdidos e o seio na mão.





Tende piedade da mulher no primeiro coito

Onde se cria a primeira alegria da Criação

E onde se consuma a tragédia dos anjos

E onde a morte encontra a vida em desintegração.





Tende piedade da mulher no instante do parto

Onde ela é como a água explodindo em convulsão

Onde ela é como a terra vomitando cólera

Onde ela é como a lua parindo desilusão.





Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas

Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade

Mas tende piedade também das mulheres casadas

Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.





Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas

Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas

Mas que vendem barato muito instante de esquecimento

E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.





Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas

De corpo hermético e coração patético

Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas

Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.





Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres

Que ninguém mais merece tanto amor e amizade

Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade

Que ninguém mais precisa tanto alegria e serenidade.





Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras

Que são crianças e são trágicas e são belas

Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam

E que têm a única emoção da vida nelas.





Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse

Ter piedade de si mesma e da sua louca mocidade

E outra, à simples emoção do amor piedoso

Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.





Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas

A vida fere mais fundo e mais fecundo

E o sexo está nelas, e o mundo está nelas

E a loucura reside nesse mundo.





Tende piedade, Senhor, das santas mulheres

Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede enfim

Piedoso com todos, que tudo merece piedade

E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

PROCURA DA POESIA - DRUMMOND

Procura da Poesia


Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.



Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro

são indiferentes.

Não me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.



Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.



O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.



Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.



Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.



Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.



Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.



Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?



Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

ESPERANÇA


Esperança




Mário Quintana





Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano

Vive uma louca chamada Esperança

E ela pensa que quando todas as sirenas

Todas as buzinas

Todos os reco-recos tocarem

Atira-se

E

— ó delicioso vôo!

Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,

Outra vez criança...

E em torno dela indagará o povo:

— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?

E ela lhes dirá

(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)

Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:

— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

BILHETE



BILHETE


Se tu me amas, ama-me baixinho

Não o grites de cima dos telhados

Deixa em paz os passarinhos

Deixa em paz a mim!

Se me queres,

enfim,

tem de ser bem devagarinho, Amada,

que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...


Mário Quintana

domingo, 21 de fevereiro de 2010

DÉCIMA

DÉCIMA

Se pica-flor me chamais.
Pica-flor aceito ser,
mas resta agora saber,
se no nome, que me dais, meteis a flor, que gaurdais no passarinho melhor!
se me dais êste favor,
sendo só de mim o pica
e o mais vosso, claro fica,
que fico então Pica-flor.

Gregório de Matos - O Boca do Inferno

DESENCANTO


Eu faço versos como quem chora

De desalento... de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.


Meu verso é sangue. Volúpia ardente...

Tristeza esparsa...remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente.

Cai, gota a gota, do coração.


E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Dexando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.


Teresópolis, 1912,



o grande, Manuel Bandeira.

HORAS ETERNAS


HORAS ETERNAS

Quando eu ia pelo teu braço, campina abaixo, sentia o impulso indomável de gritar à toda gente:"Vede. ir assim insignificante e leve pelo seu braço, É TER UMA HORA ETERNA!
Quando sentamos no muro de adobe, coberto de hera e rosmaninho, eu tive desejo de dizer à toutinegra que picava a relva: "Vês, toutinegra minha, estar aqui, abandonada de ventura com as mãos em seu regaço, SIGNIFICA SENTIR UMA HORA ETERNA!
Quando paramos, ouvindo o sussurar das espumas da lagoa prateada, eu tive vontade de murmurar ao ligeiro fragor de suas ondas: "Sabes, estar assim, vivendo o sonho dos nossos anseios na nossa mudez interior, É VIVER UMA HORA ETERNA!
Quando falaste, meu querido amor, na meiguice do meu coração e na minha sonhadora alma, lastimei não poder dizer à branca navegante perdida entre as nuvens que estar a ouvir a música das tuas palavras, ERA POSSUIR UMA HORA ETERNA!
E quando me beijaste, meu amor, debaixo da flama azul do céu daquela noite, eu pedi baixinho às estrelas, que me trouxessem a morte na culminância de êxtase DAQUELA HORA ETERNA!

Do livro Poemas em Prosa, da grande poetisa gaúcha, Diocómata Ialeme Berlese, da qual nada sei, pois comprei o livro num sebo.

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO


Os Ombros Suportam o Mundo

Carlos Drummond de Andrade


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.