domingo, 28 de março de 2010

A Lágrima - Guerra Junqueiro


A Lágrima




Manhã de Junho ardente. Uma encosta escavada,

Sêca, deserta e nua, à beira d'uma estrada.



Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha,

Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.



Sôbre uma folha hostil duma figueira brava,

Mendiga que se nutre a pedregulho e lava,



A aurora desprendeu, compassiva e divina,

Uma lágrima etérea, enorme e cristalina.



Lágrima tão ideal, tão límpida, que ao vê-la,

De perto era um diamante e de longe uma estrêla.



Passa um rei com o seu cortejo de espavento,

Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.



- "No meu diadema, disse o rei, quedando a olhar,

Há safiras sem conta e brilhantes sem par,



"Há rubins orientais, sangrentos e doirados,

Como beijos d'amor, a arder, cristalizados.



"Há pérolas que são gotas de mágua imensa,

Que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa.



"Pois, brilhantes, rubins e pérolas de Ofir,

Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir



"Nesta c'roa orgulhosa, olímpica, suprema,

Vendo o Globo a teus pés do alto do teu diadema!"



E a lágrima deleste, ingénua e luminosa,

Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.



- - -



Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,

Passa no seu ginete um cavaleiro andante.



E o cavaleiro diz à lágrima irisada:

"Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!



"Far-te hei relampejar, de vitória em vitória,

Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória!



"E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro,

Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.



"E assim alumiarás com teu vivo esplendor

Mil combates de heróis e mil sonhos d'amor!"



E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,

Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.



- - -



Montado numa mula escura, de caminho,

Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.



Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro:

Grandes arcas de cedro, abarrotadas d'oiro.



E o velhinho andrajoso e magro como um junco,

O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,



Vendo a estrêla, exclamou: "Oh Deus, que maravilha!

Como ela resplandece, e tremeluz, e brilha!



"Com meu oiro em montão podiam-se comprar

Os impérios dos reis e os navios do mar,



"E por esse diamante esplêndido trocara

Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!"



E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,

Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.



- - -



Debaixo da figueira, então, um cardo agreste,

Já ressequido, disse à lágrima celeste:



"A terra onde o lilaz e a balsamina medra

Para mim teve sempre um coração de pedra.



"Se a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso,

O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.



"Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos,

Ouvi trinar, gorgear a música dos ninhos.



"Nunca junto de mim ranchos de namoradas

Debandaram, cantando, em noites estreladas...



"Voa a ave no azul e passa longe o amor,

Porque ai! Nunca dei sombra e nunca tive flor!...



"Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota d'água,

Cai na desolação desta infinita mágoa!"



E a lágrima celeste, ingénua e luminosa,

Tremeu, tremeu, tremeu... e caíu silenciosa!...



- - -



E algum tempo depois o triste cardo exangue,

Reverdecendo, dava uma flor côr de sangue,



Dum roxo macerado, e dorido, e desfeito,

Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito...



E ao cálix virginal da pobre flor vermelha

Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...

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Guerra Junqueiro

25 de Março de 1888

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