quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

CÚMPLICE - JUCA CHAVES

Originalmente é a letra de uma música do grande humorista e intelectual Juca Chaves. A poesia é muito linda.


CÚMPLICE

Eu quero uma mulher


que seja diferente

de todas que eu já tive,

de todas tão iguais

que seja minha amiga,

amante, confidente

a cúmplice de tudo

que eu fizer a mais.

No corpo tenha o Sol

no coração a Lua

a pele cor de sonho

as formas de maçãs

a fina transparência

uma elegância nua

o mágico fascínio

o cheiro das manhãs.

Eu quero uma mulher

de coloridos modos

que morda os lábios sempre

que for me abraçar

no seu falar provoque

o silenciar de todos

e seu silêncio obrigue

a me fazer sonhar

Que saiba receber

que saiba ser bem-vinda

que possa dar jeitinho

a tudo que fizer

que ao sorrir provoque

uma covinha linda

de dia, uma menina

a noite, uma mulher.

Receita de mulher - Vinícius de Moraes


Vinícius de Moraes



Receita de mulher



As muito feias que me perdoem

Mas beleza é fundamental. É preciso

Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso

Qualquer coisa de dança,

qualquer coisa de haute couture

Em tudo isso (ou então

Que a mulher se socialize

elegantemente em azul,

como na República Popular Chinesa).

Não há meio-termo possível. É preciso

Que tudo isso seja belo. É preciso

que súbito tenha-se a

impressão de ver uma

garça apenas pousada e que um rosto

Adquira de vez em quando essa cor só

encontrável no terceiro minuto da aurora.

É preciso que tudo isso seja sem ser, mas

que se reflita e desabroche

No olhar dos homens. É preciso,

é absolutamente preciso

Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que

umas pálpebras cerradas

Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços

Alguma coisa além da carne: que se os toque

Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos

Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro

Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e

Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem

Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então

Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca

Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.

É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos

Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,

e as pontas pélvicas

No enlaçar de uma cintura semovente.

Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:

uma mulher sem saboneteiras

É como um rio sem pontes. Indispensável.

Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida

A mulher se alteie em cálice, e que seus seios

Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca

E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.

Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral

Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!

Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas

E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem

No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.

É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio

Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).

Preferíveis sem dúvida os pescoços longos

De forma que a cabeça dê por vezes a impressão

De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre

Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos

Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face

Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior

A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras

Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes

E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e

Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão

Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta

Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.

Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos

Ao abri-los ela não estará mais presente

Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá

E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber

O fel da dúvida. Oh, sobretudo

Que ela não perca nunca, não importa em que mundo

Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade

De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma

Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre

O impossível perfume; e destile sempre

O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto

Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina

Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição

Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

DAR NÃO É FAZER AMOR

Texto maravilhoso, contribuição de uma querida colega de trabalho a qual me reservo o direito de não declinar o nome. Disse-me ela que não curte muito poesia  mas contribuiu com este texto maravilhoso.


DAR NÃO É FAZER AMOR


(Luís Fernando Veríssimo)





Dar é dar.

Fazer amor é lindo, é sublime, é encantador, é esplêndido.

Mas dar é bom pra cacete.

Dar é aquela coisa que alguém te puxa os cabelos da nuca...

Te chama de nomes que eu não escreveria...

Não te vira com delicadeza...

Não sente vergonha de ritmos animais. Dar é bom.

Melhor do que dar, só dar por dar.

Dar sem querer casar....

Sem querer apresentar pra mãe...

Sem querer dar o primeiro abraço no Ano Novo.

Dar porque o cara te esquenta a coluna vertebral...

Te amolece o gingado...

Te molha o instinto.

Dar porque a vida é estressante e dar relaxa.

Dar porque se você não der para ele hoje, vai dar amanhã, ou depois de amanhã.

Tem pessoas que você vai acabar dando, não tem jeito.

Dar sem esperar ouvir promessas, sem esperar ouvir carinhos, sem

esperar ouvir futuro.

Dar é bom, na hora.

Durante um mês.

Para os mais desavisados, talvez anos.



Mas dar é dar demais e ficar vazio.

Dar é não ganhar.

É não ganhar um eu te amo baixinho perdido no meio do escuro.

É não ganhar uma mão no ombro quando o caos da cidade parece querer te abduzir.

É não ter alguém pra querer casar, para apresentar pra mãe, pra dar

o primeiro abraço de Ano Novo e pra falar:

"Que que cê acha amor?".

É não ter companhia garantida para viajar.

É não ter para quem ligar quando recebe uma boa notícia.

Dar é não querer dormir encaixadinho...

É não ter alguém para ouvir seus dengos...

Mas dar é inevitável, dê mesmo, dê sempre, dê muito.



Mas dê mais ainda, muito mais do que qualquer coisa, uma chance ao amor.

Esse sim é o maior tesão.

Esse sim relaxa, cura o mau humor, ameniza todas as crises e faz você flutuar



Experimente ser amado...









Alfredo F. Schmitt

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

RESÍDUO - DRUMMOND

De tudo ficou um pouco


Do meu medo. Do teu asco.

Dos gritos gagos. Da rosa

ficou um pouco





Ficou um pouco de luz

captada no chapéu.

Nos olhos do rufião

de ternura ficou um pouco

(muito pouco).





Pouco ficou deste pó

de que teu branco sapato

se cobriu. Ficaram poucas

roupas, poucos véus rotos

pouco, pouco, muito pouco.





Mas de tudo fica um pouco.

Da ponte bombardeada,

de duas folhas de grama,

do maço

- vazio - de cigarros, ficou um pouco.





Pois de tudo fica um pouco.

Fica um pouco de teu queixo

no queixo de tua filha.

De teu áspero silêncio

um pouco ficou, um pouco

nos muros zangados,

nas folhas, mudas, que sobem.





Ficou um pouco de tudo

no pires de porcelana,

dragão partido, flor branca,

ficou um pouco

de ruga na vossa testa,

retrato.





Se de tudo fica um pouco,

mas por que não ficaria

um pouco de mim? no trem

que leva ao norte, no barco,

nos anúncios de jornal,

um pouco de mim em Londres,

um pouco de mim algures?

na consoante?

no poço?





Um pouco fica oscilando

na embocadura dos rios

e os peixes não o evitam,

um pouco: não está nos livros.





De tudo fica um pouco.

Não muito: de uma torneira

pinga esta gota absurda,

meio sal e meio álcool,

salta esta perna de rã,

este vidro de relógio

partido em mil esperanças,

este pescoço de cisne,

este segredo infantil...

De tudo ficou um pouco:

de mim; de ti; de Abelardo.

Cabelo na minha manga,

de tudo ficou um pouco;

vento nas orelhas minhas,

simplório arroto, gemido

de víscera inconformada,

e minúsculos artefatos:

campânula, alvéolo, cápsula

de revólver... de aspirina.

De tudo ficou um pouco.





E de tudo fica um pouco.

Oh abre os vidros de loção

e abafa

o insuportável mau cheiro da memória.





Mas de tudo, terrível, fica um pouco,

e sob as ondas ritmadas

e sob as nuvens e os ventos

e sob as pontes e sob os túneis

e sob as labaredas e sob o sarcasmo

e sob a gosma e sob o vômito

e sob o soluço, o cárcere, o esquecido

e sob os espetáculos e sob a morte escarlate

e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes

e sob tu mesmo e sob teus pés já duros

e sob os gonzos da família e da classe,

fica sempre um pouco de tudo.

Às vezes um botão. Às vezes um rato.

ELEGIA DESESPERADA - O DESESPERO DA PIEDADE - VINICIUS DE MORAES

Elegia Desesperada


(O Desespero da Piedade)



Vinicius de Moraes





Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde

E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...

Mas tende piedade também dos que andam de automóvel

Quantos enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.





Tende piedade das pequenas famílias suburbanas

E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos

Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam

E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina





Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta

Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina

Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte

E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.





Tende imensa piedade dos músicos de cafés e de casas de chá

Que são virtuoses da própria tristeza e solidão

Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio

E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.





Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram

E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução

Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram

E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.





Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos

Quem em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão

E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão

Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...





Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros

Que se efeminam por profissão mas são humildes nas suas carícias

Mas tende maior piedade ainda dos que cortam o cabelo:

Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!





Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria

Quem lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos

Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo

Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.





Tende piedade dos homens úteis como os dentistas

Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer

Mas tente mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia

Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.





Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos

Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão

Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes

Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.





E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tenha piedade das mulheres

Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres

Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres

Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!





Tende piedade da moça feia que serve na vida

De casa, comida e roupa lavada da moça bonita

Mas tende mais piedade ainda da moça bonita

Que o homem molesta — que o homem não presta, não presta, meu Deus!





Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais

Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação

E sonham exaltadas nos quartos humildes

Os olhos perdidos e o seio na mão.





Tende piedade da mulher no primeiro coito

Onde se cria a primeira alegria da Criação

E onde se consuma a tragédia dos anjos

E onde a morte encontra a vida em desintegração.





Tende piedade da mulher no instante do parto

Onde ela é como a água explodindo em convulsão

Onde ela é como a terra vomitando cólera

Onde ela é como a lua parindo desilusão.





Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas

Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade

Mas tende piedade também das mulheres casadas

Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.





Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas

Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas

Mas que vendem barato muito instante de esquecimento

E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.





Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas

De corpo hermético e coração patético

Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas

Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.





Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres

Que ninguém mais merece tanto amor e amizade

Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade

Que ninguém mais precisa tanto alegria e serenidade.





Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras

Que são crianças e são trágicas e são belas

Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam

E que têm a única emoção da vida nelas.





Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse

Ter piedade de si mesma e da sua louca mocidade

E outra, à simples emoção do amor piedoso

Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.





Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas

A vida fere mais fundo e mais fecundo

E o sexo está nelas, e o mundo está nelas

E a loucura reside nesse mundo.





Tende piedade, Senhor, das santas mulheres

Dos meninos velhos, dos homens humilhados — sede enfim

Piedoso com todos, que tudo merece piedade

E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

PROCURA DA POESIA - DRUMMOND

Procura da Poesia


Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.



Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro

são indiferentes.

Não me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.



Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.



O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.



Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.



Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.



Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.



Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.



Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?



Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

ESPERANÇA


Esperança




Mário Quintana





Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano

Vive uma louca chamada Esperança

E ela pensa que quando todas as sirenas

Todas as buzinas

Todos os reco-recos tocarem

Atira-se

E

— ó delicioso vôo!

Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,

Outra vez criança...

E em torno dela indagará o povo:

— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?

E ela lhes dirá

(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)

Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:

— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

BILHETE



BILHETE


Se tu me amas, ama-me baixinho

Não o grites de cima dos telhados

Deixa em paz os passarinhos

Deixa em paz a mim!

Se me queres,

enfim,

tem de ser bem devagarinho, Amada,

que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...


Mário Quintana

domingo, 21 de fevereiro de 2010

DÉCIMA

DÉCIMA

Se pica-flor me chamais.
Pica-flor aceito ser,
mas resta agora saber,
se no nome, que me dais, meteis a flor, que gaurdais no passarinho melhor!
se me dais êste favor,
sendo só de mim o pica
e o mais vosso, claro fica,
que fico então Pica-flor.

Gregório de Matos - O Boca do Inferno

DESENCANTO


Eu faço versos como quem chora

De desalento... de desencanto...

Fecha o meu livro, se por agora

Não tens motivo nenhum de pranto.


Meu verso é sangue. Volúpia ardente...

Tristeza esparsa...remorso vão...

Dói-me nas veias. Amargo e quente.

Cai, gota a gota, do coração.


E nestes versos de angústia rouca

Assim dos lábios a vida corre,

Dexando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.


Teresópolis, 1912,



o grande, Manuel Bandeira.

HORAS ETERNAS


HORAS ETERNAS

Quando eu ia pelo teu braço, campina abaixo, sentia o impulso indomável de gritar à toda gente:"Vede. ir assim insignificante e leve pelo seu braço, É TER UMA HORA ETERNA!
Quando sentamos no muro de adobe, coberto de hera e rosmaninho, eu tive desejo de dizer à toutinegra que picava a relva: "Vês, toutinegra minha, estar aqui, abandonada de ventura com as mãos em seu regaço, SIGNIFICA SENTIR UMA HORA ETERNA!
Quando paramos, ouvindo o sussurar das espumas da lagoa prateada, eu tive vontade de murmurar ao ligeiro fragor de suas ondas: "Sabes, estar assim, vivendo o sonho dos nossos anseios na nossa mudez interior, É VIVER UMA HORA ETERNA!
Quando falaste, meu querido amor, na meiguice do meu coração e na minha sonhadora alma, lastimei não poder dizer à branca navegante perdida entre as nuvens que estar a ouvir a música das tuas palavras, ERA POSSUIR UMA HORA ETERNA!
E quando me beijaste, meu amor, debaixo da flama azul do céu daquela noite, eu pedi baixinho às estrelas, que me trouxessem a morte na culminância de êxtase DAQUELA HORA ETERNA!

Do livro Poemas em Prosa, da grande poetisa gaúcha, Diocómata Ialeme Berlese, da qual nada sei, pois comprei o livro num sebo.

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO


Os Ombros Suportam o Mundo

Carlos Drummond de Andrade


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.